A publicação em 2024 de “Os Invisíveis” (1987) de Nanni Balestrini pela editora Barco Bêbado suscita uma série de apontamentos relativos não à obra em si, mas ao contexto da sua edição.
Nanni Balestrini (1935-2019) foi uma das principais figuras da contracultura italiana, ligando o experimentalismo das vanguardas artísticas e literárias do início do século com as experiências insurrecionais do pós-guerra. Talvez apenas Pablo Echaurren se compare na produção de um imaginário imagético da chamada “área da Autonomia” nos anos Setenta, um arquipélago insurrecional de movimentos, colectivos, publicações e assembleias de fábrica e de bairro que desafiava espartilhos ideológicos, reclamando-se tanto de um anarquismo espúrio como de um comunismo sem estado[1].
Em “Os Invisíveis”, um narrador anónimo relata a sua vida militante, começando nas primeiras revoltas liceais e nas ocupações de centros sociais, descrevendo um uso difuso da violência revolucionária no contexto geral da luta armada, terminando, como centenas de outros jovens, no inferno da prisão.
As obras mais conhecidas do trabalho artístico de Balestrini serão os seus quadros, que estruturam as palavras de ordem, o repertório conceptual e os gritos da época enquanto poesia visual, compondo uma cartografia textual dos movimentos.
A sua experimentação literária ocorre em continuidade com este trabalho gráfico. Balestrini escolhe personagens tipo (um jovem operário nas greves selvagens da FIAT dos anos Sessenta; um jovem “autónomo” no hinterland Lombardo dos anos Setenta) e implode a estrutura sintática da sua narrativa directa, sobrando um discurso “rizomático”, como se diria na altura, que traduz a vertigem da explosão subjectiva em curso. O discurso é exterior, contrário a qualquer “fluxo de pensamento” modernista, mais próximo da verborreia esquizóide da exaltação colectiva do que da introspeção neurótica de um qualquer abismo interior:
Na manhã em que fizemos a ocupação do Cantinão chegámos lá muito cedo chegámos lá cedissimo de manhã era sábado de manhã e na noite anterior enquanto Valerio e Nocciola guardavam a rua em ambos os sentidos eu Cotogno e Ortica furámos com um furador feito à mão o cadeado de baixo onde está a fechadura e o cadeado abriu-se assim na manhã a seguir ia já estar tudo pronto e iria bastar retirar a corrente e depois colocámos ao longo do fosso do outro lado da rua sacos de plástico escondidos no mato com pedras, bolas de ferro e fundas pouca coisa porque dentro do Cantinão já havia todo o tipo de material para nos podermos defender em caso de ataque imediato.
Balestrini recria a linguagem do seu tempo, não de um tempo “histórico”, mas de um tempo suspenso numa longa insurreição difusa. É, portanto, um exercício mais etnográfico do que experimental. Basta comparar qualquer um dos seus parágrafos com alguns dos textos do período, como o famoso texto sobre “valor de uso” escrito em 1979 pelo recém-falecido Franco Piperno:
Valor de uso é a rejeição do posto de trabalho fixo, mesmo se ao lado de casa: é o horror ao ofício: é mobilidade: é fuga ao desempenho enquanto resistência activa contra a mercadoria, a tornar-se mercadoria, a ser-se possuído pelos movimentos da mercadoria. (…) Valor de uso é o desejo de aprender com o corpo inteiro esta nova sensibilidade que emerge desse continente rico de tons, de nuances, de emoções sensíveis que é o associativismo juvenil na sua relação particular com a música, o cinema, a pintura (…) Valor de uso é a pesquisa obstinada de novas relações entre os homens, de um modo “transversal de comunicar”, de experimentar, de crescer sobre a própria diversidade (…) Valor de uso é a “alegria atenciosa” própria do roubo de objectos úteis, desejados - que é a relação directa com as coisas, liberta da mediação suja e inútil do dinheiro (…) Valor de uso é a esperança ingénua com a qual na agricultura, nos serviços, nos bairros, nascem, para viver de modo frágil e depois morrer, milhares de experiência de “contraeconomia”. (…) Valor de uso é abstração desumana do homicídio, do atentado - solução imaginária para um problema real, arrependimento denso da própria potência, tentativa desesperada de afirmar, com um orgulho impaciente, a sua própria força social[2].
Balestrini respondia à singularidade das formas políticas que vivia. A excepcionalidade do 68 italiano não é, proverbialmente, ter “durado dez anos”, até ao final dos anos Setenta, mas de nessa extensão ter conseguido ensaiar uma ruptura interna à própria categoria de “política”. Imagine-se um longo e extenso PREC, onde o aprofundar das experiências de “poder popular” começasse a ir mais além da lógica de participação, de valorização económica e de cidadania, assumindo a sua própria experiência colectiva enquanto programa, fazendo da vida vivida um instrumento de subversão em si própria.
A intensa aceleração do “milagre Italiano” fez com que o choque da sujeição ao tempo e espaço da grande fábrica fosse particularmente óbvio e brutal. Todas as identidades socioeconómicas - o ser “operário”, o ser “desempregado”, o ser “mulher”, o ser “jovem”, o ser “marginal” – revelavam ser apenas categorias do confronto entre o domínio capitalista e um antagonismo de classe de rastilho curto. A resposta seria também “imediata”. “Queremos Tudo”, como dizia o próprio Balestrini. A contestação recusava toda a mediação social - sindicatos, partidos, etc – opondo-lhes então esse arquipélago de recusas: a dita “área da autonomia”. Não a “autonomia” da autogestão do capitalismo, mas a “autonomia” da recusa de todo o processo produtivo[3].
“Os Invisíveis” acompanha a parte final dessa década. A insurreição eufórica encontra os seus limites no confronto com o estado e com o Partido Comunista Italiano, que acusa milhares de pessoas de terrorismo, levando centenas delas ao exílio em França. É enquanto bildungsroman colectivo que “Os Invisíveis” se torna num texto mítico, desses que lidos na idade certa transformam uma vida. O livro é, literalmente, um manual de subversão. Ensina quando uma ruptura com a burocracia activista consegue criar uma comunidade capaz de escalar uma luta, etc. Hoje, no entanto, uma atenção lúcida e sensível ao texto encontrará nele menos um mito do que um luto.
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O furioso excesso comunal de “Os Invisíveis” seria hoje impossível. Todos os que por ele enveredassem seriam imediatamente identificados e processados. A extensão dos meios objectivos e subjectivos de controle social dissolveu o contrapoder “invisível” das grandes metrópoles que se extinguiu sem que tenha sequer dado conta disso.
É por isso tão estranha a decisão de incluir um prefácio de Negri de 2005, profundamente anacrónico, nesta presente edição portuguesa. Negri é repescado na tentativa de associar o seu prestígio a um texto que não apenas o dispensa como é diminuído por ele. Negri associa a vitalidade dos “Invisíveis” aos vários movimentos então contemporâneos (a Pantera, movimento estudantil italiano dos anos 90, e as grandes mobilizações anti-globalização de Seatlle, Praga e Génova) afirmando que o livro faz uma antropologia da “multitude” que vem, traçando uma linha de continuidade entre os anos Setenta e uma nova primavera dos movimentos. Se este tipo de afirmação era comum em 2005, em 2025 soa a uma piada de mau gosto.
A sintonia concreta entre as instituições formais e informais da esquerda (o dito “movimento”) e as formas difusas de antagonismo social parecia algo “natural” até à sucessão explosiva de revoltas e insurreições que se seguiram à crise financeira de 2008, onde se começou, lentamente, a desenhar um seu divórcio.
Em 2011/12, nas praças ocupadas de Madrid, Lisboa e Nova Iorque, “movimento” e antagonismo pareciam indistinguíveis. Tornaram-se, poucos anos depois, em 2019/2020, durante os Coletes Amarelos e a “Insurreição George Floyd” (ambos descritos enquanto as maiores revoltas desde 1968), em entidades distintas: o impacto das instituições militantes no desenvolvimento dos acontecimentos foi relativamente nulo. De um lado, os “movimentos sociais”, folclorizados, burocratizados e autorreferenciais, incapazes de pensar além da política representativa, de uma banal catequese dos bons sentimentos, e da judicialização autofágica do seu próprio meio. Do outro lado, as massas “selvagens”, cada vez mais proletarizadas e privas de forma, ilegíveis à luz das categorias políticas das sociedades liberais, simultaneamente demasiado revolucionárias e demasiado reaccionárias, humilhadas e odiadas pelo progressismo, avessas a qualquer paternalismo, prontas para explodir a casa toda por lhes ser óbvio que não lhes resta qualquer saída de emergência.
Talvez o melhor comentário ao prefácio de Negri, e à decisão de o recuperar, sejam as palavras recentes do seu ex-compagnon de route, Maurizio Lazzarato:
Houve quem delirasse sobre a autonomia do proletariado cognitivo e a independência da nova composição de classe. Nada mais falso. Quem decide onde, quando, como e com que força-de-trabalho se produz (assalariada, precária, servil, escrava, feminina, etc) é, de novo, quem possui o capital necessário, quem possui a liquidez e o poder para o fazer. Não é certamente o mais fraco proletariado dos últimos dois séculos. Longe de qualquer “autonomia” e “independência”, a realidade de classe é subordinação, subjugação e submissão, como nunca aconteceu na história do capitalismo. Ser “trabalho vivo” é uma desgraça, porque é sempre trabalho dominado, como o do meu pai e o do meu avô. O trabalho não produz “o” mundo, mas o “mundo do capital”, o que, até prova em contrário, é algo bastante diferente, porque o mundo do capital é um mundo de merda[4].
O que há hoje a pensar são as descontinuidades entre o nosso tempo e o tempo da narrativa de Balestrini.
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A promessa geral de que uma “outra esquerda”, mais libertária e democrática, estaria pronta a substituir a “velha esquerda”, estatal e autoritária, ganhou novo fôlego após a queda do muro em 1989. A premissa fundamental, com expressões múltiplas e contraditórias, era que as lutas em si, na sua própria essência, constituiriam as formas emancipatórias vindouras. A experiência social e organizacional dos movimentos e da contra-cultura - aparentemente aberta, dinâmica, democrática, criativa, inclusiva e horizontal - era um ensaio da política que vinha, liberta do determinismo e produtivismo social-democrata e/ou filosoviético.
A reorganização do capitalismo podia ter extinguido a classe operária de antanho, mas as novas formas de trabalho continham o mesmo desejo de democracia, justiça e igualdade. As inúmeras tentativas de renomear a composição de classe contemporânea - o precariado, o cognitariado, etc – recusavam a substituição de uma luta de classes ancorada no processo produtivo por uma nova “classe média” global, procurando ao mesmo tempo superar as formas clássicas de identidade operária (masculina, branca, produtivista, etc). A essência da esquerda era agora a criatividade e a multiplicidade, protagonizada por um sujeito composto, que exigia sobretudo um novo tipo de contrato social. A emergência do “movimentismo” significou uma transformação no próprio conceito de organização e de vanguarda. Os movimentos abandonavam o paternalismo bacoco do leninismo vulgar, desenvolvendo e experimentando internamente um repertório prático e crítico que aguardaria pelas inevitáveis crises sistémicas para se constituir enquanto forma de luta hegemónica. As práticas militantes do final dos anos noventa, dos blocos negros aos fóruns sociais passando pelas ocupações, acabariam por informar mobilizações massivas, primeiro nos movimentos antiglobalização de Seattle, Praga e Génova e depois nas primaveras árabes, nas praças ocupadas e nos movimentos anti austeridade, onde uma multidão assumiu, de facto, o repertório critico e contestatário dos millieus militantes.
Mas a história da última década demonstra como todo esse quadro político foi amplamente derrotado. A espirituosidade e engenho de todas essas composições de classe prêt-à-porter escondia apenas a instabilidade existencial de uma classe média confrontada com a sua inevitável pauperização. Face aos programas de austeridade do início da década passada, a mesma pequeno-burguesia progressista e cosmopolita que tinha entendido a crise financeira enquanto esgotamento sistémico de capitalismo percebeu que tinha, afinal, muito mais a perder do que as suas correntes. Se para grande parte da classe média as consequências da crise refletiam-se sobretudo em termos económicos, dando azo ao seu chauvinismo populista e autoritário, para a classe média letrada, criativa e intelectualizada o que estava em jogo com os cortes neoliberais na despesa do estado era sobretudo o seu capital simbólico e cultural.
O seu programa difuso deixou então de ser o questionamento dos limites das democracias liberais para se tornar na acérrima defesa das instituições públicas. A realpolitik económica obrigou a classe média progressista a abandonar a pretensa paixão política por uma “democracia real”, abandonando qualquer fantasia revolucionária, sobrando apenas uma enorme ansiedade em provar a sua necessidade social e o seu valor enquanto elite intelectual e cultural. A “multitude” que meia década antes exigia a destituição de todos os governos nas praças ocupadas estava agora nas redes sociais a exigir mais leis, mais estado, mais subvenções, mais instituições, revelando-se tanto mais conservadora quanto mais pavoneava o seu progressismo enquanto conquista civilizacional.
A separação histórica entre “movimento” e antagonismo ocorre nessa reconversão da intelligentsia pós-68 à razão de estado. Nos protestos dos Coletes Amarelos em França em 2019 surge essa outra classe média em crise, proletarizada e periférica, que recorria aos repertórios “de movimento” (ocupação de rotundas, democracia directa, medias autónomos, confrontos com as forças da ordem) sem se expressar dentro do quadro simbólico, referencial e moral de uma “esquerda” que se tinha, entretanto, tornado totalmente incapaz de compreender quem eram os pagãos que devastavam os Campos Elísios. A “esquerda” cosmopolita, liberal, progressista, essa subjectividade moderna, herdeira tresmalhada de Nietzsche, Marx e Freud, nascida com a revolução sexual, com a emancipação feminina, com a libertação homossexual, com a poesia caída nas ruas e com o dia inicial inteiro e limpo, tornava-se afinal num dos principais garantes e baluartes do status quo.
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O corolário da despolitização da esquerda foi a sua adesão entusiasta à gestão estatal da pandemia. A sua vaidosa formação pós-estruturalista e descolonizante esfumou-se no ar à medida que a “validade cientiíica” dos confinamentos se tornou na única discussão possível. O cancelamento total de qualquer consideração política, existencial ou social sobre a gestão pública da pandemia demonstra quão impossível se tornou qualquer inquirição crítica ou filosófica que vá além de uma naturalização do estado. A pandemia fundiu essa esquerda libertária, democrática, horizontal, alegre e criativa com a razão soberana, num processo histórico ainda hoje complexo de apreender.
Em termos de filosofia política moderna, a autoridade do estado justifica-se pela alegada necessidade de concílio entre sujeitos que no seu “estado natural” estariam entregues à violenta anarquia da lei do mais forte. O poder do estado é composto pelo poder que todos lhe cedemos de modo que esse poder comum seja sempre mais forte do que o mais forte entre nós. Enquanto súmula de instituições jurídicas e soberanas, o estado agrega interesses individuais, reprimindo uns, encorajando outros, sistematizando-os num empreendimento colectivo. A “sociedade” é o campo de mediações entre esferas de interesse díspares e antagónicas, um conjunto de instâncias de participação e debate aberto, sujeitas a uma constante crítica e a uma incessante reconfiguração. Por outras palavras, é a sistematização permeável e plástica da “sociedade civil” que legitima o poder governativo do estado.
A ameaça a esse convénio deixa então de ser o mito de “o mais forte” para ser quem, por uma razão ou por outra, se furta à plena participação no contrato social, recusando as suas obrigações cívicas (a participação, os impostos, a obediência à autoridade, etc) e/ou as suas obrigações culturais e simbólicas (religiosas, políticas, culturais, linguísticas, raciais, género, etc). Se a direita teme o estrangeiro, o dissidente, a minoria, etc; a esquerda teme o magnata, o mafioso, o hooligan, etc. O estado é precisamente a instituição que nos protege de uma violência sempre latente e iminente, vinda de baixo ou de cima. Mas se algo se tornou claro com o pensamento crítico moderno é que a violência projectada é a violência do projectante. O confronto entre mediações universais e interesses singulares é inerentemente violento e essa violência é-lhe fundamentalmente interna.
Isto ocorre num duplo processo. Em primeiro lugar, a própria “sociedade”, enquanto abstração, enquanto mediação primária, ocorre enquanto necessária subsumpção de todas as relações sociais cuja imediatez seja incompatível com o seu quadro normativo. Ou seja, se a sociedade abstracta precisa de instituições concretas (a educação, a família, a religião, a cultura, os partidos, a ideologia, etc), ela necessita também de se autonomizar de todas elas, ou seja, do risco que elas próprias cindam com campo de mediação abstracta. Se, por um lado, o processo de constituição social é interminável (a subsunção normativa de comunidades espontâneas é uma tarefa contínua), por outro, há uma clara teleologia política inerente à ideia de sociedade, que é a criação de um ser puramente social e abstracto, de uma identidade inteiramente cívica. Em segundo lugar, essa forma social abstracta corresponde, obviamente, a um propósito produtivo, de criação de circulação de valor. É esse propósito que coloca em movimento o paradigma social de contínua constituição e destituição de comunidades concretas. A acumulação primitiva não é um episódio histórico da constituição do capitalismo, mas um processo interno à sua própria reprodução. A criação de novos produtos, de novos mercados, de novos capitais e de novas forças de trabalho implica, sempre, a destruição dos antigos.
O propósito da “sociedade” é então, por um lado, permitir e agilizar a vertigem selvagem da circulação de capital e, por outro, gerir os curto-circuitos sociais que daí advenham, autorizando uns, reprimindo outros. A violência espontânea ao processo é pressuposta, encorajada, organizada, compensada e redirecionada. Dito de outro modo, as sociedades capitalistas necessitam de garantir a sua paz social exactamente do mesmo modo em que necessitam de travar a sua guerra social. As sociedades capitalistas necessitam de garantir a sua ordem exactamente na mesma medida que necessitam de garantir a sua anarquia.
A sociedade perfeita não produz paz social, mas a crise ideal, onde o máximo de produtividade possível coincide com o máximo de atomização social possível. O sujeito social ideal é aquele que conseguiu tornar a sua identidade produtiva indistinguível da sua identidade cívica. A pandemia foi uma aproximação a esta crise ideal. O sujeito totalmente territorializado pela ordem soberana tornou-se, ao mesmo tempo, o sujeito totalmente desterritorializado pela aceleração brutal dos fluxos de informação. O poder anárquico do Estado fundiu-se com a anarquia autoritária das redes, e vice-versa. Ambas estas funções adquiriram uma capacidade técnica historicamente inédita, tornando-se indiscerníveis e contíguas. Milhões de pessoas seguras em casa entregues ao mais delirante, voraz e aditivo onanismo tecnológico. A sua anarquia cínica e iconoclasta tornando-se indistinguível da absoluta obediência à linguagem do estado. Foi esse o aufhebung, a simultânea concretização e superação, da tensão entre indivíduo e grupo que constituía as sociedades liberais. A ordem tornou-se anárquica precisamente enquanto ordem. Trump e Musk destroem o estado enquanto os anarquistas criam regimes jurídicos.
É nesse contexto que as categorias clássicas da política e da sociologia se tornam obsoletas. Esquerda, democracia, opinião pública, sociedade civil, cultura, etc, são termos que hoje pouco querem dizer. O vocabulário pós-68 não era, obviamente, o vocabulário liberal, mas era, ainda assim, uma tentativa de o reformular noutros termos: de o “desconstruir”, de o “desterritorializar”, de o “profanar”, de o “desnaturalizar”, etc. Abandonado, justamente, o projecto socialista, o que parecia sobrar era uma tentativa de apimentar a fenomenologia social, política e cultural das relações sociais capitalistas.
Todo esse programa de novas mediações e de abolição de todas as grandes metafisicas colapsa com a decomposição do mundo liberal. O programa implícito à “teoria”, mais francesa, mais alemã (ou mais italiana), sobrevive apenas enquanto consciência cínica do niilismo vigente. A consciência difusa de que somos governados por dispositivos fundamentalmente apocalípticos deu lugar ao desesperado fascínio com a absurdez de toda a situação. O sujeito contemporâneo sabe perfeitamente que a sua vida é governada por um regime de abstrações contingentes que o devastam incessantemente, mas reserva, enquanto último resquício de propriedade de si, o enamoramento intelectual pelo seu próprio cinismo e sarcasmo. Esse narcisismo onanista é o barco salva-vidas que sobra, e é nele que vagueamos à deriva num oceano de tédio, ansiedade e desespero.
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É enquanto ruína de um mito que “Os Invisíveis” se revela. O seu experimentalismo formal acaba por ser acessório à sua estrutura narrativa. O personagem principal não é tanto o narrador como o seu fluxo verbal, e como tal os enredos menores revelam-se sucedâneos ao exercício literário em si.
Elementos cruciais do período, como a emergência de um feminismo autónomo ao próprio movimento autónomo e a explosão do consumo de heroína são remetidas a um par de anedotas circunstanciais. Mas à distância de quase quatro décadas, o que ainda há por pensar acerca da Autonomia não é tanto a sua feérica energia insurrecional, amplamente discutida e celebrada, mas o que nela existia já de estranhamento do mundo.
O questionamento[5] dos líderes carismáticos, da bravata guevarista e marxiana, do hedonismo manipulador da revolução sexual e das próprias práticas discursivas do movimento afirmava uma diferença feminina, uma alteridade antropológica, ao mundo masculino. Se hoje essa postura é desafiada pelo seu essencialismo de género, ela possui, no entanto, algo digno de atenção: uma prática comum de pensamento e de alteridade que se constitui numa recusa lenta e não numa oposição histriónica. As práticas de autoconhecimento, as longas conversas de partilha confessional, o tornar comum do que era pessoal, operavam o lento tecer de uma linguagem e de um gesto que superava tanto o pânico como o cinismo.
O consumo de heroína durante os anos Setenta reforça este ponto. É o esgotamento do movimento que leva milhares de jovens ao uso de uma substância que recria a plenitude existencial e emocional que sentiam no calor e na comunhão das lutas. Tal não ocorria por fraqueza, por desajuste ou por hedonismo, pelo contrário, era uma decisão consciente ante a ruína da efusividade afectiva e aventurosa do movimento e ante o que havia de intolerável no ultimato entre o salto no escuro da luta armada e a condenação a “uma vida normal”. É precisamente o seu cunho anti-heroico que torna o gesto digno de uma outra atenção, enquanto “estratégia da recusa” levada aos seus últimos limites físicos. A epidemia opiácea dos movimentos revolucionários dos anos Setenta antecipa e explica a epidemia opiácea contemporânea. O livro por escrever que existe no verso de “Os Invisíveis” é, precisamente, o livro das experiências contemporâneas à sua trama que são impossíveis de traduzir dentro do artifício literário de Balestrini. São essas que procuram ainda uma sua linguagem – a de um inefável desencontro entre o êxtase da comunhão e da revolta e a mundanidade da política e do quotidiano. Os “livros revolucionários” necessários são os que dizem a verdade de uma época. A nossa não é a de uma desbordante alegria comunizante, mas de uma derrota.
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O futuro trará dissensos cada vez mais radicais e violentos, mas cada vez mais privos de forma e de consistência[6]. Se, num passado recente, havia de facto algo de disruptor na imediatez da experiência sensorial e psíquica da exploração e da submissão, se era precisamente o corpo, enquanto desejo e espírito, a expressar uma alteridade à violência da fábrica e do estado, hoje o controlo social, através dos algoritmos, criou a sua própria endocrinologia.
O que sobra é uma “disciplina da atenção[7]”.
Estar presente no olho do furacão, suspendendo todo o julgamento cínico que nos prenda ao desencanto da época, substituindo-o uma contemplação cujo cuidado é em tudo contrário à urgência e à chantagem de um hiperpresente encostado às nossas gargantas como uma faca. Essa atenção deve descobrir que incipientes fissuras se tornarão contradições significativas. Essas ocorrem no que a vida contém de mais íntimo e indizível, não porque secreto, mas porque informulável. É necessário empreender um longo e sinuoso “inquérito”, não às condições de produção, mas às condições de subjectivação e dessubjectivação. É dessa atenção que poderá surgir uma nova linguagem, comum no que contém de dissolução da consciência de si na consciência do outro. A imediatez a reclamar não é a do meu desejo, da minha compensação psíquica, da minha urgência ansiosa, mas a que antecede um sentido do próprio, porque se é antes algo outro, mais vasto e mais comum. É um programa tão ténue quanto a tecla mais leve de um piano velho, mas será esse o único piano a soar nas barricadas.
[1] Sobre a história do período em questão ver Um Piano nas Barricadas de Marcello Tarì e L’Orda d’Oro, editado por Nanni Balestrini, Primo Moroni e Sergio Bianchi. Ambos estão disponíveis em várias traduções. Sobre o imaginário artístico da Autonomia ver Images of Class. Operaismo, Autonomia and the Visual Arts de Jacopo Galimberti.
[2] Franco Piperno, Sul Lavoro non Operaio, na revista “Metropoli”
[3] “A ciência social de hoje é como o aparelho produtivo da sociedade moderna – todos nele participam e todo o usam, mas os únicos a lucrar são os patrões. Não o poderais destruir – dizem-nos – sem fazer com que o homem regresse à barbárie. Mas, antes de tudo, quem vos disse que nos importa a civilização do homem?” Mario Tronti em Operários e Capital.
[4] Porquê a Guerra? de Maurizio Lazzarato
[5] O feminismo italiano dos anos setenta é vasto, indo desde a teoria marxiana da reprodução social de Federici, Fortunati e Della Costa aos vários tons do separatismo de Carla Lonzi, da revista Sottosopra e do Coletivo da Livraria das Mulheres de Milão. Ver Sputtiamo su Hegel de Carla Lonzi e Non Credere di Avere dei Diritti da Libreria delle Donne di Milano.
[6] A recente manifestação em Lisboa contra o assédio policial aos imigrantes é um bom exemplo. Foi uma das maiores manifestações da última década sem que tenha conseguido produzir algo para além do anuncia de uma candidatura do Partido Socialista à Câmara Municipal de Lisboa.
[7] “Por comunismo, entendemos uma certa disciplina da atenção” Convocação, Anónimo.